quinta-feira, 22 de abril de 2010

Hora do Conto - "A Dança dos Ossos"

Numa sexta-feira à noite, Zeca Bigode montou no seu burro e tomou o caminho de casa. Saiu de tarde, quando o sol estava baixo, para viajar no fresco; quando chegou à beira da mata, já era noite. No momento em que entrava no bosque, lembrou que era sexta-feira. Seu coração deu um salto no peito, mas ele não quis mostrar que era medroso e continuou. “Como é que um homem da minha idade, acostumado a se embrenhar no mato a qualquer hora, vai ter medo agora? E medo do que? Só porque é sexta-feira? Ara!...”, disse para si mesmo.

Zeca Bigode rezou, tomou um gole de cachaça e avançou devagar, no passo do burro. Todas as histórias que tinha ouvido contar na beira da cova do Tio Manuel, que fora enterrado naquele bosque vieram à sua cabeça. Para complicar a situação, o burro não queria seguir, fazia meia-volta, parava para comer... Zeca teve de esporear o bicho para que ele desempacasse, e foi assim por todo o caminho. Mas, à medida que se aproximava da sepultura, quem tinha vontade de voltar era o próprio Zeca. Resolveu tomar mais um trago de cachaça, rezou uma ave-maria e continuou. Perto da cova, quis passar correndo, mas foi ali mesmo que o burro empacou de vez. Zeca tinha decidido apear, largar o burro no caminho e correr para casa, quando apareceu uma figura à sua frente que interrompeu a sua ação.

“Podem acreditar, não é lorota não”, contou Bigode para os amigos. “Naquele momento, tive certeza de que ninguém morre de medo; se morresse, eu estaria morto.” Só de recordar, ele estremeceu. Fez o sinal-da-cruz e continuou: “Eu e meu burro tínhamos chegada à clareira onde fica a sepultura do tio Manuel. Enquanto esporeava a barriga do burro com toda a força, um punhado de ossos brancos à minha frente. Os ossos saltitavam num ritmo marcado, como se estivesse dançando uma coreografia. Ao ver aquilo fiquei paralisado! Mas havia mais surpresa pela noite. De dentro da cova saiu uma caveira branquíssima com olhos de fogo. Pulando como um sapo, entrou no meio da roda formada pelos ossos. De vez em quando, a caveira dava um pulo no ar e saltava no mesmo lugar, enquanto os ossos giravam na maior velocidade”.

Zeca Bigode queria fugir dali, mas seu corpo estava imobilizado, e ele não conseguiu desgrudar os olhos daquela cena maluca. Aos poucos, os ossinhos menores foram se reunindo e formaram dois pés, que começaram a sapatear. Então, os ossos da canela e do joelho deram um pulo e se encaixaram nos pés. Dali a pouco, os ossos das coxas se uniram aos joelhos. No mesmo ritmo, os ossos dos quadris, das costelas, da coluna, dos braços e das mãos foram se juntando até completar o esqueleto: só faltava a cabeça.

“Naquele momento, achei que aquilo era o máximo e nada mais doido devia aparecer. Eu não sabia que o esqueleto ia entrar no meio da roda. Ele abraçou a caveira e começou a girar com ela. Depois, largou a caveira e se postou na estrada, com as pernas e os braços abertos; uma cabeça veio voando e foi se encaixar no seu corpo.

Quando olhei para aquela cabeça oca, dei com dois olhos de fogo pregados em mim! Ah, meus amigos, perdi o fôlego! Abri a boca para gritar, mas o grito não saiu. O burrinho tremia, todo encolhido; parecia querer se enfiar debaixo da terra. Mas o horror mal tinha começado. O esqueleto resolveu se divertir comigo. Como se fosse uma marionete, veio dançar na minha frente; deu três voltas em torno de mim, estalando os ossos, e no final, com um pulo, montou na minha garupa. Depois disso, não enxerguei mais nada. Sai com meu burro e o esqueleto zunindo pelo ar. Imaginem vocês aquele burrinho empacado voando pela mata! O burro não trotava nem galopava __ voava mesmo! Suas patas não tocavam o chão; ele corria na altura da copa das árvores! ‘Valha-me, Nossa Senhora Aparecida!’, eu gritava dentro do peito, mais morto do que vivo. Pensei que estivesse indo para o inferno! Então, minha cabeça começou a rodar, meus olhos embaçaram, e não sei mais o que aconteceu comigo.”

Zeca Bigode só deu por si no dia seguinte, quando acordou na sua cama, o sol brilhando alto no céu. Naquela manhã, quando a mãe de Zeca se levantou e abriu a porta da cozinha, encontrou o filho desmaiado no quintal, com o burro ao lado dele, e levou-o para a cama.

“O portão de casa estava trancado”, conta Zeca. “Como é que o burro pôde entrar comigo com o portão fechado?! Ninguém me tira da cabeça que o burro veio pelos ares.”

Quando Zeca se levantou, tinha o corpo moído e a cabeça pesada como chumbo.

“No dia seguinte, mandei rezar duas missas pela alma do tio Manuel. O estalar dos ossos da caveira ficou um mês nos meus ouvidos. Depois disso, nunca mais pus os pés fora de casa numa sexta-feira à noite.”

(Inspirada em “A dança dos ossos”, história coletada por Bernardo Guimarães em Lendas e romances.)

Contada pela Bibliotecária: Jucelma Cardoso Cipriano.


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